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domingo, 27 de março de 2011

A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO CONTRA A AUTO-INCRIMINAÇÃO NO CENÁRIO MUNDIAL E NO DIREITO BRASILEIRO



RESUMO: Traça breve histórico da busca da verdade dentro da história humana, constatando que a tortura era um meio legalmente admitido, cuja contestação se deu pelo movimento iluminista. É inglesa a origem do princípio contra a autoincriminação, em face de suas peculiaridades históricas. Com sua evolução, o princípio hoje encontra previsão inclusive em diversos estatutos internacionais.

No Brasil, antes da alteração promovida pela lei 10.792/2003, o princípio já
encontrava aplicação por força do artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal de
1988 e pelos Decretos nº 592 e 678, ambos de 1992.

PALAVRAS-CHAVE: Direito processual penal. Princípio contra a autoincriminação. História. Constituição Federal Brasileira de 1988. Art. 186 do
Código de processo penal.

1.    INTRODUÇÃO

A verdade sempre foi um objetivo perseguido pelo homem, iniciado a partir dos seus primeiros passos na Terra.

E nessa busca incessante, na descoberta de sua origem, a razão de ser das coisas, se encontra uma das grandes forças que o impelem para vencer dificuldades e dar continuidade a sua sobrevivência.

No âmbito do direito, a busca da verdade (ou daquilo que se crê ser ela) permeia todo o trabalho dos seus operadores; todavia, nesse aspecto, nada mais significativo do que sua história e conseqüências no processo penal.

2.    BREVE INCURSÃO HISTÓRICA MUNDIAL

De fato, “a apuração da verdade é uma meta essencial do direito processual penal” (DIAS, 1987, p. 180) e o principio contra a auto-incriminação revela-se uma conquista da luta do indivíduo (acusado) contra o poder de investigação do Estado.

Haddad (2005, p. 69) define o princípio contra a auto-incriminação em não obrigar o acusado à “apresentação de elementos de prova que tenham ou possam ter futuro valor incriminatório.” Ou seja, veda-se a obrigação de se
produzir qualquer elemento de prova contra si mesmo.

Sua origem, defende parte da doutrina, estaria localizada na cultura dos Hebreus, no Velho Testamento.

Zainaghi (2004, p. 134), citando Leonard W. Levy, esclarece que entre os Hebreus prevalecia “a máxima ein Adam se ipsum tenetur. Numa tradução literal, significa que um homem não poderia apresentar-se como culpado, ou
como transgressor. (...) Estava proibida a admissão em depoimento de qualquer testemunho auto-incriminatório, mesmo dado voluntariamente.”

A lógica desse entendimento resulta do fato de que o homem, na medida em que não poderia dispor de sua vida, já que pertencia a DEUS, também não poderia confessar o cometimento de um crime que o sujeitasse à morte.
Todavia, a atual compreensão do instituto permite concluir que sua origem é outra.

Com a proibição da aplicação das ordálias pelo 4º Concílio de Latrão, em 1215, convocada por Inocêncio III, posteriormente adotou-se na Europa um novo sistema de provas, a saber, o sistema da prova legal ou também denominada
tarifada.

Nessa mesma oportunidade, a Igreja também decidiu adotar o sistema inquisitório de persecução criminal (RAMOS, 1996, p. 67), o qual passou a ser observado também pelos tribunais civis de toda a Europa, com exceção da
Inglaterra, como adverte GRINOVER (1978, p. 98).

Logo, o magistrado valorava as provas seguindo uma hierarquia previamente prevista na lei (GOMES FILHO, 1997, p. 22) e a confissão era considerada a rainha das provas. Além do mais, buscava-se a verdade por todas as formas possíveis, inclusive a tortura e o juramento (FOUCAULT, 2005, p.
35).

Quando interrogado, o acusado deveria colaborar manifestando a verdade, caso não o fizesse, seria submetido à tortura, a qual era perfeitamente aceitável, na medida em que o acusado era considerado não um sujeito, mas um objeto de prova (característica do sistema inquisitório).

O apogeu da tortura se deu entre os séculos XIII e XVII com o movimento da Inquisição (BOUÇAS, 1997, 5), perdurando até o final do século XVIII, cujo fim se deu em razão das críticas promovidas pelo Iluminismo (Século das Luzes).

Deve-se ponderar, no entanto, a advertência de Tornaghi (1995, p. 17) de que: “é preciso não esquecer que a tortura não foi uma invenção do processo inquisitório. Ele já a encontrou com larga tradição entre todos os povos antigos.”

Antes de tudo, era um meio legítimo e legal para o obtenção de provas.

Cesare Beccaria e Pietro Verri, influenciados pelas obras de pensadores como Jean Jacques Rousseau e Charles de Montesquieu, focalizaram os princípios do Iluminismo ao sistema penal e carcerário, que resultou numa ampla reflexão e combate ao sistema inquisitório, fazendo ressurgir o sistema acusatório, porém renovado.
Na obra Dos delitos e das Penas, publicada em 1764, Beccaria (2006, p. 37) afirma que “é uma barbárie, consagrada pelo uso na maioria dos governos, aplicar a tortura a um acusado enquanto se faz o processo, seja para que ele
confesse a autoria do crime, seja para esclarecer as contradições em que tenha caído, seja para descobrir os cúmplices ou outros crimes de que não é acusado .“(....)

A partir do pensamento de Beccaria e Verri, a tortura foi sendo gradativamente eliminada dos regimes estatais, como meio oficial da obtenção da “verdade”: da “Escócia em 1702, da Prússia em 1740 e 1754, da Rússia em 1768, da Suécia em 1772, da Áustria em 1776, da França em 1780 e da Suíça em 1798” (HADDAD, 2005, p. 104).

É dentro desse contexto, com o retorno e renovação do sistema acusatório, que o direito contra a auto-incriminação ganha grande repercussão nos países da civil law.

No entanto, o princípio contra a auto-incriminação tem seu nascedouro, segundo Ada Pelegrini Grinover, Carlos Henrique Borlido Haadad e Maria
Elizabeth Queijo, na Inglaterra, pois, durante o tempo em que na Europa continental foi adotado o sistema inquisitório, ali foi adotado o sistema acusatório.

Haadad (2005, p. 107) esclarece que, enquanto no sistema inquisitório se fiava na confissão como elemento probatório, os tribunais ingleses atribuíam maior relevância a outras formas de provas, tal como o julgamento pelo júri.

Após um longo processo que iniciou em 1215 com a Carta Magna de João Sem Terra, no ano de 1641, o princípio foi albergado no Estatuto de Carlos I (GRINOVER, 1978, p. 103); contudo, Queijo (2003, p. 18) aponta que efetivamente o direito só foi consagrado no final do século XVIII.

De fato, “durante o século XVI, é de se ressaltar que o direito fundamental dos acusados não era de silenciar, mas de ter oportunidade de falar no processo
criminal.” (QUEIJO, 2003, p. 16). Ou seja, era da sua responsabilidade a “própria defesa e a opção pelo silêncio comprometia-a integralmente” (HADDAD, 2003, p. 110), uma vez que era vedada a constituição de advogados.

O direito ao silêncio somente ganhou força quando se garantiu que o mesmo pudesse ser utilizado por outra pessoa em favor do acusado.

Com o fim dos tribunais eclesiásticos em 1641, a possibilidade de os acusados serem assistidos por advogados (1838), bem como a observância do princípio da presunção da inocência e do devido processo legal, é que estavam estruturadas as condições necessárias para o acusado efetivamente valer-se do direito ao silêncio (QUEIJO, 2003, p. 18).

Nos Estados Unidos, o princípio foi incorporado à Constituição (1787) pela V Emenda, nos seguintes termos:

Ninguém será detido para responder por crime capital, ou outro crime infamante, salvo por denúncia ou acusação perante um Grande Júri, exceto em se tratando de casos que, em tempo de guerra ou de perigo público, ocorram nas forças de terra ou mar, ou na milícia, durante serviço ativo; ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde; nem ser obrigado em qualquer processo criminal a servir de testemunha contra si mesmo; nem ser privado da vida, liberdade, ou bens, sem processo legal; nem a propriedade privada poderá ser expropriada para uso público, sem justa indenização.


Dois diplomas internacionais modernos também reconhecem o princípio contra a auto-incriminação:

1º) a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada em 22.11.1969, em São José da Costa Rica, no artigo 8º, §2º, g, verbis:

Artigo 8º. Garantias Judiciais
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua
inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.

2º) o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, de 16.12.1966, no artigo 14, n. 3, g, verbis:

3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias:
g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.

Mais recentemente, em 17.07.1998, pelo Estatuto de Roma, criou-se o Tribunal Penal Internacional com o objetivo de punir os crimes que afetem a comunidade internacional, colocando em risco a paz, a segurança e o bem estar da sociedade, o qual expressamente também adotou o princípio contra a autoincriminação, verbis:

Artigo 55 - Direitos das Pessoas no Decurso do Inquérito
1. No decurso de um inquérito aberto nos termos do presente
Estatuto:
a) Nenhuma pessoa poderá ser obrigada a depor contra si própria ou a declarar-se culpada;

Assim, o princípio que veda a auto-incriminação modernamente encontra-se consagrado nos ordenamentos jurídicos nacionais e internacionais, afastando “as presunções e indícios desfavoráveis à defesa e acrescentou ao interrogatório maiores características defensivas, porque não há mais o ônus,
nem o dever de o preso ou o acusado fornecerem elementos de prova que o prejudique” (HADDAD, 2005, p. 125).

3.    TRATAMENTO NORMATIVO DO PRINCÍPIO NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 preceitua, em seu art. 5º, LXIII, o qual está inserto no Título III, dedicado dos direitos e garantias fundamentais, que

o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurado a assistência da família e de advogado.”

No entanto, o Código de Processo Penal (CPP), em seu artigo 186, declarava que “antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.”

Como se pode observar, em uma primeira análise, a parte final do artigo 186 do CPP retiraria o efeito pretendido pela Constituição Federal de 1988. Porém,
em razão da supremacia das normas constitucionais sob todo o ordenamento jurídico (BASTOS, 1998, p. 47), essa segunda parte não foi recepcionada pela atual Constituição.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal, no Habeas Corpus nº 80.949-9/RJ, tendo como Ministro Relator Sepúlveda Pertence, declarou a inconstitucionalidade da segunda parte do artigo 186 do CPP, verbis:

Gravação clandestina de “conversa informal” do indiciado com policiais. Ilicitude decorrente — quando não da evidência de estar o suspeito, na ocasião, ilegalmente preso ou da falta de prova idônea do seu assentimento à gravação ambiental —, de constituir, dita “conversa informal”, modalidade de “interrogatório” subreptício, o qual — além de realizar-se sem as formalidades legais do interrogatório no inquérito policial (C.Pr.Pen., art. 6º, V) —, se faz sem que o indiciado seja advertido do seu direito ao silêncio. O privilégio contra a auto-incriminação — nemo tenetur se detegere
—, erigido em garantia fundamental pela Constituição – além da
inconstitucionalidade superveniente da parte final do art. 186 C.Pr.Pen. importou compelir o inquiridor, na polícia ou em juízo, ao dever de advertir o interrogado do seu direito ao silêncio: a falta da advertência — e da sua documentação formal — faz ilícita a prova que, contra si mesmo, forneça o indiciado ou acusado no interrogatório formal e, com mais razão, em “conversa informal” gravada, clandestinamente ou não.

Moura e Moraes (1994, p. 135) declaram que o choque entre esses dois ordenamentos resultou das diferentes ideologias que os inspiraram, verbis:

Nosso ordenamento processual penal, datado de 1941, foi elaborado
sob o influxo das idéias positivistas emergentes no final do século passado e início deste, que propugnaram pela prevalência dos interesses repressivos do Estado (ou, como denominavam, da “defesa social”) sobre os interesses individuais fundamentais.
A Constituição Brasileira, em vigor, datada de 1988, inspirou-se em
ideais democráticos, nos quais as liberdades públicas têm presença
marcante e constituem limitações impostas ao próprio Poder Estatal.

A questão foi dissipada com a alteração promovida pela Lei nº 10.792/2003, no Código de Processo Penal, que modificou diversos dispositivos do capítulo dedicado ao interrogatório do acusado. A nova redação do artigo 186 é a seguinte:

Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro
teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não
responder perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não
poderá ser interpretado em prejuízo da defesa.

Deve-se registrar ainda que, tanto pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA), em São José da Costa Rica, em vigor no Brasil por meio do Decreto nº 678/1992, quanto pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da
ONU, em vigor no Brasil por meio do Decreto nº 592/1992, o princípio contra
a auto-incriminação já encontrava aplicação no ordenamento jurídico nacional,
antes mesmo da referida alteração efetuada no Código de Processo Penal.

REFERêNCIAS
BASTOS, C.  Curso de direito constitucional. 19. ed. São Paulo: Saraiva,
1998.
BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. São Paulo: M. Claret. 2006.
COIMBRA, C. M. B. Tortura no Brasil como herança cultural dos períodos
autoritários.  Revista CEJ/Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos
Judiciários. Brasília: CEJ. n. 14, maio/ago. p. 5-9, 2001.
DIAS NETO, T. D. O direito ao silêncio: tratamento nos direitos alemão e norteamericano. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, a. 5, n. 19,
jul./set.  p. 179-204, 1987.
FOUCAULT, M.  Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes,
2005.
GOMES FILHO, A. M. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1997.
GRINOVER, A. P. O processo em sua unidade. São Paulo: Saraiva, 1978.
HADDAD, C. H. B.  Conteúdo e contornos do princípio contra a autoincriminação. Campinas: Bookseller, 2005.
MORAES, M. Z. de. M.; ASSIS, M. T. R. de. Direito ao silêncio no interrogatório.
Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, a. 2, n. 6, abr./jun.  p.
133-147, 1994.
QUEIJO, M. E. O direito de não produzir prova contra si mesmo. São Paulo:
Saraiva, 2003.
RAMOS, J. G. G.  Audiência processual penal. Belo Horizonte: Del Rey,
1996.
TORNAGHI, H. Curso de processo penal.  9. ed. atual. São Paulo: Saraiva,
1995. v. 1.
ZAINAGHI, D. H. de C. G. M. O direito ao silêncio: evolução histórica: do Talmud
aos pactos e declarações internacionais.  Revista de Direito Constitucional e
Internacional, n. 48, jul./set. p. 133-157, 2004.

Daniel Januário

JANUÁRIO, D. A evolução histórica do princípio contra a auto-incriminação
no cenário mundial e no direito brasileiro.  Rev. Ciên. Jur. e Soc. da Unipar.
Umuarama. v. 11, n. 1, p. 45-52, jan./jun. 2008.



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