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quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

UMA CAMPANHA CONTRA A MAGISTRATURA (E O PODER JUDICIÁRIO)


Uma campanha desvinculada de ética e imparcialidade
Por Fernando Henrique Pinto em 17/01/2012 na edição 677
Por conta do desvio de algumas dezenas de magistrados, num universo de
quase 15 mil, instalou-se em alguns setores da imprensa brasileira uma
campanha difamatória contra o Poder Judiciário, campanha que, há muito
desvinculada da ética e da imparcialidade, publica mentiras e meias
verdades, muitas delas de fácil aferição, e omite pontos fundamentais que
deveriam constar de reportagens. A magistratura brasileira – a esmagadora
maioria composta de juízes de primeira instância concursados – está atônita
e muito preocupada com essa campanha difamatória, pelo abalo (já
constatável) que a mesma está causando na credibilidade e respeito ao Poder
Judiciário, com risco, em última análise, ao Estado organizado de Direito e
à própria Democracia.
O mais recente exemplo dessa situação é o quadro apresentado na página A12
da edição de 15/1 da *Folha de S.Paulo*, na tentativa de incutir no leitor
o quanto supostamente seria mais vantajoso ser servidor público ou agente
político, em vez de trabalhar na iniciativa privada. Numa primeira análise,
e antes de entrar nos detalhes do quadro, percebe-se a insistente covardia
de tais setores da imprensa em não mencionar o Ministério Público, o qual
possui as mesmas garantias e vantagens da magistratura – e na prática, por
vezes, possui até mais vantagens.
Ainda em início de análise, os jornalistas Ranier Bragon e Paulo Gama
colocam parlamentares e magistrados “no mesmo saco”, mencionando “carro com
motorista”, “cotão” para “torrar” em restaurantes e até jatinhos, embora
tais vantagens sejam inimagináveis a 99% dos magistrados brasileiros –
“jatinho” então, a 100%. E omitiram, por exemplo, a verba parlamentar para
assessores, enquanto os magistrados paulistas de primeira instância lutam
pela aprovação na Assembleia de uma lei que lhes permita possuir pelo menos
um assessor – cujo salário será infinitamente menor que o de um assessor
parlamentar.
*30 dias de férias*
Também mencionaram o recente recesso de 18 dias no final do ano, ocorrido
no Judiciário de São Paulo, esquecendo-se que isso ocorreu com resistência
do Judiciário Paulista e para atender pedidos incessantes da OAB, AASP e
Iasp, com apoio do Conselho Nacional de Justiça, para que os advogados
pudessem ter um descanso. É certo, ainda, que no maior Judiciário da
América Latina (paulista), certamente muitos juízes usaram tal recesso para
colocar o serviço em dia – realidade que muitos da imprensa contestam,
embora já tenham sido inúmeras vezes convidados a constatar.
Adentrando-se, então, no quadro propriamente dito, o que mais chama a
atenção é a ausência de algumas vantagens importantíssimas da iniciativa
privada, e que fazem toda a diferença para a conclusão da análise.
Menciona-se, em primeiro lugar, o limite de 44 horas semanais de trabalho,
além dos quais os trabalhadores da iniciativa privada têm direito a horas
extraordinárias, remuneradas em no mínimo 50% a mais que a hora normal. Na
mesma linha são os adicionais, especialmente o noturno e de periculosidade
(os juízes criminais que o digam).
Em São Paulo, embora a imprensa não acredite ou não queira que o povo
acredite – ainda que sempre convidada a constatar –, é corriqueiro
magistrados trabalharem muito além de 44 horas semanais, sendo comum o
trabalho em finais de semana, feriados, e até o gasto de um dos períodos de
férias, para colocar em dia a carga de trabalho, que é a mais pesada do
Planeta Terra – conforme dados já publicados pelo Banco Mundial, OMS e OIT.
Só essa realidade compensa com sobras a suposta vantagem de 30 dias a mais
de férias. E se essa “vantagem” fosse trocada por limite de jornada de
trabalho, certamente sairia muito mais caro ao contribuinte.
*Alguns morrem antes de receber direitos*
Outra omissão importante, relativa à iniciativa privada, foi a
possibilidade de recebimento de Participação nos Lucros e Resultados e/ou
Prêmios por Produtividade, o que, em níveis de gerência e diretoria (únicas
funções que se podem comparar à responsabilidade de um magistrado), ocorrem
em valores bem elevados. E compensam com sobras as licenças-prêmio, que nem
todos os magistrados brasileiros possuem – quando são pagas em dia…
Ainda quanto a esse aspecto, é muito comum que empresas privadas custeiem
plano de saúde de boa qualidade aos seus empregados e parentes próximos,
custeiem transporte fretado, além de tais empresas terem obrigação de
manter a salubridade do ambiente de trabalho, sob pena de pesadas multas.
No mesmo sentido, se qualquer trabalhador tiver um direito seu negado,
possui a seu favor a Justiça do Trabalho, cuja eficiência é notória.
Enquanto isso, os magistrados e servidores do judiciário paulista, com seu
salário líquido (que é substancialmente inferior ao bruto divulgado), têm
que custear do bolso plano de saúde para si e sua família, muitos trabalham
em fóruns que mais parecem escombros e que não passariam por uma
superficial análise do corpo de bombeiros e fiscalização do trabalho. E,
quando não têm pagos seus direitos devidos – inclusive as tão festejadas
férias –, devem se submeter a receber em “suaves prestações” a perder de
vista, ou entrar com ação contra o próprio Judiciário, para receber por
precatório. Alguns morrem antes disso.
*O abono de permanência*
Outra matéria importantíssima é o reajuste salarial. Os magistrados não o
têm há quase quatro anos, e a defasagem, no cálculo mais conservador, é de
mais de 15%. E quando pedem mero reajuste das perdas inflacionárias, são
taxados de “marajás”, por perseguir suposto “aumento”. Enquanto isso, a
maioria dos trabalhadores organizados da iniciativa privada possui data
base e, conforme matérias divulgadas pela própria*Folha de S.Paulo*, vêm
tendo reajustes acima da inflação, ou seja, aumento real.
Importante também mencionar que os trabalhadores da iniciativa privada se
aposentam pelo teto, porque contribuem no limite do teto, sem contar que
uma parcela da contribuição é dada pelo empregador. Enquanto, isso, os
servidores públicos e agentes políticos federais e do Estado de São Paulo
se aposentam com salário integral, porque têm descontado mensalmente de seu
contra-cheque 11% de seu salário bruto.
Em vez de a *Folha de S.Paulo* mencionar isso, a mesma maquiavelicamente
apenas cita o abono de permanência como se fosse supostamente uma vantagem
do magistrado (que também é dos membros do Ministério Público). Mas na
verdade é uma vantagem do contribuinte, pois se o magistrado, com tempo
para aposentadoria, se aposentasse, seu lugar teria de ser reposto, e o
gasto seria muito maior que o incentivo de 11% para que tal profissional
continue trabalhando, mesmo podendo se aposentar.
*“Povo” custeia salários milionários*
A *Folha de S.Paulo*, ainda, em vez de mencionar apenas o “salário médio”
do setor privado, podia e deveria apresentar os salários médios – e
vantagens – de profissionais com mesmo nível de capacitação e
responsabilidade de um magistrado (se é que isso é possível), pois
constataria – e informaria seus leitores – que financeiramente não há
vantagem alguma na segunda profissão, ou no mínimo que vantagens e
desvantagens se equiparam.
É bom lembrar que, salvo os cargos públicos que dependem de eleição, os
demais cargos públicos são alcançáveis mediante concurso público, de forma
que, se alguém da iniciativa privada quiser usufruir das “vantagens” de ser
agente público, basta fazer como fizeram tais agentes, ou seja, estudaram
horas a fio durante anos, sem prejuízo do trabalho para sustentar a
família, e um dia foram aprovados por seus esforços. Isso significa
“mérito”, e somente em regimes comunistas totalitários é visto como
“privilégio”.
Finalmente, e para desmascarar mais um mito, é bom lembrar que os salários
e vantagens de todas as pessoas são pagos pelo “povo”. Os salários dos
jornalistas e lucros das empresas privadas de jornalismo, por exemplo, são
pago pelos assinantes (“povo”), pelos anunciantes (“povo”), estes últimos
que vendem produtos que são comprados pelo mesmo “povo”.
Logo, o “povo” custeia os salários e vantagens dos servidores públicos e
agentes políticos, tanto quanto custeia os salários milionários de
jogadores de futebol, artistas e apresentadores de televisão, gerentes e
diretores de empresas, de bancos etc.
[Fernando Henrique Pinto é juiz de Direito, São José dos Campos, SP]
Publicado no “PORTAL LUIS NASSIF”: http://blogln.ning.com/profiles/blogs/uma-campanha-contra-a-magistratura-e-o-poder-judici-rio

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A Lei 8.560 em prol da dignidade dos filhos


Jones Figueirêdo Alves é desembargador do Tribunal de Justiça de Pernambuco
A busca do pai deve ser travada no berço das origens, quando a criança tem seu nascimento dado a registro em cartório. Nesse fim, as mães declarantes e solteiras devem ser questionadas, ao tempo da abertura do assento civil de nascimento do filho, sobre quem seja o suposto pai da criança que estiver sendo registrada.
A atribuição da paternidade, assim informada pela mãe, no ato de registro,deve servir a um procedimento de averiguação oficiosa sobre a procedência do alegado; a tanto cumprindo ao Oficial do Registro Civil proceder com a remessa ao Juiz de Família da certidão integral do registro, acompanhada das informações de dados pessoais e endereço do suposto pai, para as providências legais da averiguação.
No entanto, cuida-se verificar se, de fato, nos atos de menores registrados apenas com o estabelecimento da maternidade, o Oficial procedeu com essa medida, em cumprimento ao que determina a Lei 8.560/92, ensejando a devida averiguação administrativa e prévia acerca da paternidade imputada.
Mais precisamente, por esse procedimento, o suposto pai é chamado ao juízo de família, quando voluntariamente poderá admitir a paternidade ou negá-la.Em casos de reconhecimento voluntário da paternidade, será feita a averbação à margem do assento de nascimento da criança reconhecida.
Em Pernambuco, a Lei estadual  13.692, de 18.12.2008, determina a isenção de emolumentos e de Taxa de Utilização dos Serviços Públicos Notariais ou de Registro (TSNR), no procedimento de averiguação de paternidade,inclusive a averbação e a certidão respectiva do ato. A citada lei originou-se do Tribunal de Justiça estadual, ao tempo em que quando presidente da Corte de Justiça (2008-2010) elaboramos a proposta legislativa. O sentido da lei,como se observa, é o de inserção de cidadania, incentivando o reconhecimento voluntário da paternidade.
Em casos de negativa de reconhecimento, pelo suposto pai, seguir-se-á então a propositura de ação judicial de investigação de paternidade, a cargo do Ministério Público como substituto processual.
Pois bem. Importa apurar, portanto, acerca da efetividade da Lei 8.560 que determina a averiguação oficiosa de paternidade, tudo em prol da dignidade dos filhos sem o reconhecimento paterno.
Significativo assinalar que somente nas escolas públicas e particulares de todo país, existem cinco milhões de estudantes, sem o nome do pai na certidão de nascimento, conforme levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), com arrimo no Censo Escolar de 2009.
Assim, resultou editada a Portaria 10/2012, da Corregedoria Geral da Justiça estadual (DJe/PE, de 10.01.2012, p. 84). Nela, como Corregedor-Geral de Justiça, em exercício, cuidamos de determinar inspeção no âmbito dos Ofícios de Registro Civil das Pessoas Naturais das Comarcas da Capital e da Região Metropolitana do Recife, no período de 11 a 18/01 (Recife) e de 19/01 a 03/02 (Grande Recife), ficando as demais do interior a critério do futuro Corregedor-Geral, desembargador Frederico Neves. Inspeção no sentido de verificar se os cartórios terão perguntado ou não o nome do pai à mãe solteira, seguindo-se a remessa dos informes à Vara de Família e instalando-se assim, nos termos da lei, o procedimento de averiguação oficiosa da paternidade.
Antes de investigar a paternidade, impende, pois, fiscalizar se a lei está sendo cumprida quando determina que deva ser apurada, oficiosamente, a paternidade dos que são registrados sem o reconhecimento e o nome paterno.
Afinal, a letra morta da lei implicará, em bom rigor, no caso concreto, uma orfandade absurda e perversa: a dos filhos de pais vivos. Estes que não se dignaram em reconhecê-los e, sequer, são chamados ao reconhecimento voluntário da paternidade.
Revista Consultor Jurídico, 17 de janeiro de 2012

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Embriaguez + direção de veículo automotor + resultado morte = homícidio doloso ou culposo?


Cumpre aos delegados, promotores e juízes verificar caso a caso a ocorrência do crime capitulado no artigo 121, do Código Penal ou do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro, de acordo com as provas apresentadas.
Acidentes automobilísticos que envolvem motoristas embriagados e que resultam em morte têm recebido grande atenção da mídia e causado grande comoção na sociedade.
A explosiva mistura de álcool e direção (quase sempre em altíssima velocidade) tem aumentado diuturnamente a quantidade de vítimas fatais e dilacerado sonhos e histórias de vida que são abruptamente interrompidas em violentas colisões e atropelamentos.
Para o operador do direito que labuta na seara criminal, a situação acima retratada traz insistente dúvida: como tipificar o ato praticado por aquele que, embriagado, toma a direção de veículo automotor, excede o limite de velocidade e as leis de trânsito e finda por tirar a vida de outrem? Trata-se de homicídio doloso (com incidência do dolo eventual) ou culposo (figurando a chamada culpa consciente)? No primeiro caso, aplica-se o artigo 121, do Código Penal. Na segunda hipótese, o crime praticado é o do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97).
Em primeiro lugar, urge definir dolo eventual e culpa consciente.
O primeiro é definido pelo Código Penal. A parte final do artigo 18, I, do referido diploma legal diz que o crime é doloso quando o agente assume o risco de produzir o resultado (assim também o é quando o agente quer o resultado – dolo direto, definido na primeira parte do mesmo dispositivo). Em exemplo aligeirado, é quando o agente prevê que com sua ação poderá advir resultado típico (definido como crime), mas continua a agir (dê no que dê, aconteça o que acontecer, vou continuar agindo). É a aceitação do resultado crime (ou pelo menos conformação com sua ocorrência, se vier a acontecer).
A segunda não tem definição legal. Genericamente, diz-se culposo o crime quando o "agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia" (artigo 18, II, do Código Penal). A culpa consciente se dá quando o agente até prevê que sua ação poderá redundar na ocorrência do resultado, mas imagina profanamente que este não ocorrerá (dirige em velocidade bastante superior à permitida, prevê que com isso poderá atropelar e matar alguém, mas imagina que tal resultado não ocorrerá). Não há aqui a aceitação do resultado crime pelo agente.
Observados os dois conceitos (ainda que não estudados em sua completude e de forma profunda), percebe-se que dificilmente se observará na prática a ocorrência da primeira hipótese, partindo da premissa de que em ambos os casos deve-se investigar a fundo o que ia na cabeça do agente quando ele decidiu entrar no seu veículo depois da ingestão exagerada de álcool. Será que ele pensou: estou embriagado, posso vir a atropelar e matar alguém e assumo a ocorrência deste resultado se ele vier a acontecer (aconteça o que acontecer, mate ou não alguém, vou dirigir embriagado - dolo eventual). Ou imaginou: estou bêbado, posso vir a atropelar e ceifar a vida de outrem, mas confio cegamente que com minha perícia automobilística esse resultado não virá a acontecer (previsão e não aceitação do resultado – culpa consciente).
Ao que penso, no mais das vezes, o que acontece na prática é a segunda situação. É difícil imaginar que passe pela cabeça de um indivíduo normal a previsão e aceitação do resultado morte de uma pessoa que ela sequer conheça.
Óbvio que há sim possibilidade de verificar na prática ocorrência do dolo eventual. Quando, por exemplo, o agente embriagado e em alta velocidade cruza sinal vermelho, finda colidindo com outro veículo e confiscando a vida do outro motorista, penso haver elementos para afirmar que houve dolo eventual (é muito difícil, embora possível, acreditar na versão de que o agente acreditava que poderia desviar de veículo que cruzasse o sinal, evitando o choque e suas consequências). Parece evidente que o agente assumiu o risco de produzir o resultado morte (dê no que dê, vou cruzar esse sinal vermelho).
Diferente é a pessoa que, embriagada, finda perdendo o controle do carro e atropelando transeunte. Aqui a culpa se mostra mais evidente (a previsibilidade da ocorrência do sinistro é bastante menor que no caso acima desenhado).
Note-se que há equívoco em analisar a situação de forma matemática ou puramente normativa (descurando do estudo do caso concreto apresentado – todas as circunstâncias que gravitaram ao seu redor). Ao meu ver, não há como criar a equação álcool + direção de veículo automotor + morte = homicídio doloso (dolo eventual). Principalmente porque dizer que o crime foi doloso significa ir à fundo na intenção do agente (dolo é elemento subjetivo do tipo e exige análise profícua da intenção do autor do fato).
Óbvio também que a tese da culpa consciente, por ser a mais favorável ao agente, sempre será levantada pela defesa. Daí porque devem delegados, promotores e juízes estudar o caso com amplitude, esmiuçando todas as provas possíveis (câmeras das ruas em que o carro do autor do fato passou, radares, prova testemunhal, exame de local de crime e outras perícias determinadas, nível de álcool no sangue do agente, participação da vítima no sinistro, prova testemunhal e interrogatório do sujeito ativo do crime apurado).
Os tribunais tupiniquins dificilmente têm retirado da análise do júri popular os fatos definidos pelos juízos inferiores como crimes dolosos contra vida. Assim é que têm sido mantidas decisões de pronúncia calcadas na análise objetiva do fato (considerando concentração alcoólica no sangue do agente, velocidade no momento do impacto e desrespeito às leis de trânsito), mandando a júri motoristas que, embriagados, findam ceifando vidas (não há, no mais das vezes como deixar de ser assim, vez que é difícil imaginar situação em que o agente admita ter assumido o risco de produzir o resultado morte). Vejamos exemplo:
Ementa: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO DOLOSO (DOLO EVENTUAL) PRATICADO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. ART. 121, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL. MANUTENÇÃO DA DECISÃO DE PRONÚNCIA. Uma linha muito tênue separa o dolo eventual da culpa consciente, pois em ambos os casos o possível resultado é conhecido e não é desejado pelo agente. A diferença reside no fato de que, na culpa consciente o agente sequer cogita a hipótese de tal resultado realmente vir a ocorrer, enquanto no dolo eventual aceita a possibilidade, simplesmente aceitando o risco que corre de produzir o resultado. Diante de tão sutil diferença, seria mesmo imprudente privar os jurados da apreciação do fato, que consiste em um acidente de trânsito causado por motorista embriagado. PEDIDO DE DESCLASSIFICAÇÃO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE ANIMUS NECANDI NA CONDUTA DO ACUSADO. INVIABILIDADE DE RECONHECIMENTO DESDE LOGO DIANTE DA INEXISTÊNCIA DE CERTEZA ABSOLUTA QUANTO AO DOLO DE MATAR. A desclassificação do delito importa em apreciação do animus necandi, matéria de competência exclusiva do Tribunal do Júri, só podendo ser operada nesta fase processual quando há certeza absoluta da inexistência do dolo de matar. EXCESSO DE LINGUAGEM. INOCORRÊNCIA. Não se configura o excesso na pronúncia quando o prolator se limita a fundamentar sua decisão, nos termos do artigo 93, inciso IX, da CF, apenas descrevendo depoimentos testemunhais, a fim de embasá-la. NEGARAM PROVIMENTO AOS RECURSOS (Recurso em Sentido Estrito Nº 70036376309, Primeira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcel Esquivel Hoppe, Julgado em 07/07/2010).
O Superior Tribunal de Justiça, instado a se manifestar acerca do tema pela via estreita do habeas corpus firmou entendimento de que é incabível análise pormenorizada da prova com o fito de determinar se o agente que se embriaga, toma a direção de veículo automotor e finda ceifando vidas agiu com dolo eventual ou culpa consciente nos autos do referido remédio heroico. O Pariato tem optado por deixar a análise do caso para o júri popular. Vejamos decisum:
HABEAS CORPUS. TRIBUNAL DO JÚRI. PRONÚNCIA POR HOMICÍDIO SIMPLES A TÍTULO DE DOLO EVENTUAL. DESCLASSIFICAÇÃO PARA HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXAME DE ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO. ANÁLISE APROFUNDADA DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. VIA INADEQUADA. COMPETÊNCIA DO CONSELHO DE SENTENÇA. ORDEM DENEGADA. 1. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que as dúvidas, nessa fase processual, resolvem-se contra o réu e a favor da sociedade. É o mandamento do art. 408 e atual art. 413 do CPP. 2. O exame da insurgência exposta na impetração, no que tange à desclassificação do delito, demanda aprofundado revolvimento do conjunto probatório, já que para que seja reconhecida a culpa consciente ou o dolo eventual, faz-se necessária uma análise minuciosa da conduta do recorrente, procedimento este inviável na via estreita do habeas corpus. 3. Afirmar se agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático-probatório produzido no âmbito do devido processo legal, o que impede a análise do elemento subjetivo de sua conduta por este Sodalício. 4. Na hipótese, tendo a decisão impugnada asseverado que há provas da ocorrência do delito e indícios da autoria assestada ao agente e tendo a provisional trazido a descrição da conduta com a indicação da existência de crime doloso contra a vida, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, não se evidencia ilegalidade na manutenção da pronúncia pelo dolo eventual, que, para sua averiguação depende de profundo estudo das provas, as quais deverão ser oportunamente sopesadas pelo Juízo competente no âmbito do procedimento próprio, dotado de cognição exauriente. 5. Ordem denegada (STJ, HC 199100/SP, 5ª Turma, rel. Min. Jorge Mussi, j. 04/08/2011).
O fato é que estamos diante de crimes com penas bastante diferentes (o homicídio doloso tem pena de 6 a 20 anos e o culposo na direção de veículo automotor é apenado com reprimenda de 2 a 4 anos) e de grande comoção causada pelos trágicos resultados. Isso gera considerável pressão incidente sobre os atores do processo penal (delegados, promotores e juízes), que finda influenciando a decisão a ser tomada por estes (esta decisão tem diversos reflexos – possibilidade de concessão de fiança pelo delegado de polícia, sujeição do autor do fato ao tribunal do júri, dentre outros).
Penso que há duas formas de enfrentar de forma pragmática a situação minimizando seus funestos resultados (mortes resultantes da embriaguez na direção de veículo automotor): a) intensificar a fiscalização com o fito de impedir que motoristas guiem bêbados; b) aumentar de forma proporcional, estudada e arrazoada a pena descrita no artigo 302, do CTB.
Ademais, cumpre aos delegados, promotores e juízes verificar caso a caso a ocorrência do crime capitulado no artigo 121, do Código Penal ou do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro, de acordo com as provas apresentadas, evitando enquadramentos matemáticos em colisões e atropelamentos que envolvem motoristas embriagados, alta velocidade e mortes.

Autor

  • Delegado de Polícia Federal e Professor da FACAPE - Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina

Informações sobre o texto

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT

SILVA, Márcio Alberto Gomes. Embriaguez + direção de veículo automotor + resultado morte = homícidio doloso ou culposo?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20846>.

A importância do assistente de acusação na apuração dos crimes contra a dignidade sexual


O presente artigo visa demonstrar a importância atribuída ao assistente de acusação na apuração dos crimes contra a dignidade sexual, com as mudanças trazidas pelas Leis nºs 11.719, de 20 junho de 2008 e 12.015, de 7 de agosto de 2009, que modificaram, respectivamente, o Código de Processo Penal e o Código Penal Brasileiros.
Inicialmente, porém, deve-se registrar, ainda que en passant, a existência de algumas controvérsias na seara jurídica ligadas ao instituto da assistência de acusação, havendo, inclusive, posicionamentos doutrinários que sustentam a sua inconstitucionalidade no nosso sistema processual penal contemporâneo.
Todavia, o presente ensaio não tenciona levar a discussão a esse nível, haja vista que a doutrina brasileira, bem como a jurisprudência dos nossos Tribunais consagram, de forma unânime, a presença viva desse instituto no ordenamento jurídico pátrio.
Nesse sentido, é consabido no âmbito jurídico-penal que nos crimes de ação penal pública, ou seja, naqueles em que a titularidade da ação compete ao Ministério Público, poderá o ofendido ou seu representante legal, se menor de 18 anos, ou, no caso de ausência ou morte, qualquer das pessoas mencionadas no art. 31 do CPP, ingressar no processo mediante a admissão como assistente de acusação nos termos do artigo 268 usque 273 deste diploma legal.
Entretanto, tal legitimação não dispensa a capacidade postulatória, definida como a aptidão técnica para postular em juízo, prerrogativa exclusiva do advogado, assim considerado o bacharel em direito com inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil, após aprovação no Exame de Ordem, visto que com a Magna Carta de 1988¹ o advogado passou a ser reconhecido como indispensável à administração da Justiça, sendo que no seu ministério privado presta serviço público e exerce função social, e no processo judicial colabora na postulação de decisão favorável ao seu constituinte e ao convencimento do julgador, consistindo os seus atos num verdadeiro múnus público (art. 133 da CF c/c o art. 2º, §§ 1º, 2º e 3°, da Lei nº 8.906/94 (EAOAB).
Por conseguinte, estando o assistente de acusação devidamente representado em juízo por um advogado, com instrumento procuratório específico incluso, poderá atuar em todos os termos do processo, sempre depois do promotor de justiça, com amplos poderes para propor meios de prova, fazer perguntas às testemunhas, participar dos debates orais, requerer a prisão preventiva e outras diligências, e até mesmo recorrer quando necessário, geralmente, após transitar em julgado a sentença ou decisão para o titular da pretensão punitiva².
Na realidade, o interesse do ofendido em se habilitar como assistente, por meio de advogado, se justifica pelo fato de, na qualidade de vítima atingida diretamente pela conduta ilícitaapurada no processo, ser o titular do bem jurídico lesado, podendo, deste modo, intervir para ajudar, assistir e auxiliar o Ministério Público na averiguação da verdade substancial, bem assim garantir seus interesses em relação à indenização civil decorrente dos danos produzidos pelo crime, que ocorrerá, normalmente, a partir da sentença penal condenatória.
Vê-se, dessa maneira, que o assistente de acusação tem relevante papel participativo na persecução penal, exercendo, nesse ponto, um direito de ação, sem ter, necessariamente, a obrigação de interferir. No entanto, se assim proceder, terá o direito de deduzir a sua pretensão condenatória contra o acusado em busca da escorreita distribuição da justiça penal e reparação civil dos danos gerados pelo crime.
Nessa ordem de ideias, sem descurar da importante participação do assistente nos demais crimes de ação penal pública, deve-se lembrar que a sua função participativa tem maior relevância nos crimes contra a dignidade sexual, pois, em face da substituição da expressão "Dos Crimes Contra os Costumes" pela "Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual", operada pela Lei nº 12.015/2009, alterou-se, também, o foco da proteção jurídica, que antes eram apenas os hábitos e a moral da sociedade, incluiu-se, outrossim, a dignidade sexual do indivíduo³.Assim, ao tratar a lei penal de crimes contra a "dignidade sexual", resta clara a intenção de proteger a dignidade da pessoa humana, a sua liberdade e intangibilidade sexual, além do completo e saudável desenvolvimento da personalidade, no que tange à sexualidade do ser humano.
Não obstante, o que se protege no aspecto sexual não é apenas a dignidade do ser humano, mas também a sua liberdade e integridade física e moral, sua vida e sua honra, bens jurídicos tutelados nos crimes contra a dignidade sexual, variando segundo o tipo penal violado. Além disso, busca-se também a proteção da moralidade pública sexual, cujos padrões devem pautar a conduta das pessoas, preservando-se outros valores igualmente importantes para a sociedade.
No entanto, como dito, o bem jurídico essencialmente protegido nesses delitos é, sem sombra dúvida, a dignidade sexual, de onde deflue a honra - objetiva e subjetiva -, ou seja, protege-se não só a reputação do indivíduo no meio social, mas também o seu sentimento de dignidade e respeito próprio.
Com efeito, a tutela da dignidade sexual emana do princípio da dignidade do ser humano, postulado supremo do direito pátrio, previsto no artigo 1º, inciso III, da CF/88¹, in litteris:"A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;"
Nesse contexto, pode-se afirmar que o princípio da dignidade humana, consagrado pela Carta Magna como valor cardeal para o alicerce da ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, constitui um referencial unificador dos direitos fundamentais objetivando resguardar o bem-estar das pessoas no ambiente social, protegendo-as de quaisquer agressões à sua personalidade.
Sendo assim, como valor universal e inerente ao ser humano, a sua normatização transcende os limites territoriais, passando a ser um postulado do Direito Internacional, tendo como principal documento a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao dispor em seu artigo 1º que: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade." Da mesma forma, a tutela da dignidade humana se encontra consagrada na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de dezembro de 1969, do qual o Brasil é signatário, cujo artigo 11 dispõe: "1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade."
Nesse diapasão, estabelece o artigo 5º, inciso X, da nossa Lei Maior¹, in verbis: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;"
Conclui-se, destarte, que em todas as esferas da vida em sociedade, independentemente de tipificação explicita, quando houver violação a qualquer dos bens jurídicos garantidos pelo princípio da dignidade humana, deverá este fato ser objeto de reparação, com a imposição da sanção correspondente, na maioria dos casos, por compensação pecuniária, mediante solicitação expressa do ofendido ou representante legal tecnicamente habilitado.
Sobre esse aspecto, deve-se destacar que antes da reforma do CPP, realizada pela Lei nº 11.719/2008, que modificou sensivelmente os procedimentos previstos na legislação processual penal, havia duas formas básicas para o ofendido, vítima de um delito, pleitear a reparação civil, quais sejam: podia esperar o trânsito em julgado da sentença penal condenatóriapara requerer-lhe a liquidação e posterior execução ou, então, promover, imediatamente, mesmo que pendente o processo criminal, uma ação de cognição, isto é, a conhecida actio civilis ex delicto ² (arts. 63 e 64 do CPP).
Porém, com a modificação operada pela referida lei, inobstante a manutenção dessas duas alternativas para o ofendido conseguir a reparação civil, atribuiu-se ao juiz criminal a competência cumulativa para fixação de indenização em decorrência dos danos materiais e/ou morais gerados pela infração4.Para tanto, o legislador introduziu o parágrafo único no art. 63 do CPP, dispondo que: "Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido."
Em seguida, tratando da sentença condenatória, inseriu o inciso IV no art. 387 do CPP, que diz: "fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido".
Contudo, esqueceu de mencionar o rito processual a ser utilizado para averiguação do aludido valor indenizatório, bem como quem teria legitimidade para requerer a reparação dos danos causados pelo crime, indicando unicamente um valor mínimo, quando, na verdade, poderia ter inserido expressamente a possibilidade de arbitramento do valor total da indenização.
Diantedessas omissões, surgiram dúvidas por parte da comunidade jurídica quanto à aplicação desse dispositivo legal sem violação de outras normas jurídicas, sendo certo que a doutrina e a jurisprudência pátrias vêm construindo orientações para esses problemas, afirmando que na hipótese de indenização à vítima, não há cogitar-se de condenação do réu a indenizar prejuízos sofridos pelo ofendido sem que este tenha formulado pedido explícito, pois, a fixação de indenização civil ex officio na decisão criminal condenatória, sem o respectivo debate entre as partes, fere frontalmente os princípios do contraditório e da ampla defesa, já que o réu tem direito de se defender tanto no tocante à questão penal quanto à civil4. Alertam, ademais, que a interpretação do art. 387, inciso IV, do CPP, deve ser harmonizada com o princípio da necessidade da demanda, consubstanciado no brocardo latino ne procedat judex ex officio, segundo o qual o juiz não pode condenar de ofício, ou seja, sem provocação. Aliás, esse é o entendimento jurisprudencial que vem se firmando no egrégio TJDFT5in verbis:
(...)
"2. A indenização dos danos causados à vítima deve ser excluída quando não haja pedido expresso do interessado, nem submissão do tema ao contraditório e à ampla defesa, haja vista o princípio da inércia da jurisdição."
Em regra, tratando-se de ações penais exclusivamente privadas não há qualquer obstáculo processual, uma vez que o pleito indenizatório pode ser deduzido ordinariamente pela vítima ou representante legal, com a apresentação da petição inicial acusatória, pois, sendo o ofendido o próprio titular da ação, também tem legitimidade para requerer a indenização. Os problemas surgem no campo das ações penais públicas, por ser o Ministério Público o dominus litis, ensejando as seguintes indagações: Quem teria legitimidade e capacidade postulatória para formular o pedido de indenização em favor da vítima ou ofendido? E, em se tratando de ofendido economicamente hipossuficiente, a quem caberia essa incumbência? Qual, enfim, o procedimento adequado a ser adotado para apuração do valor indenizatório?
Consultando a legislação, doutrina e jurisprudência sobre o assunto, devido à escassez de obras a respeito, em virtude, talvez, da novidade do tema, não encontramos soluções precisas para essas questões. Todavia, partindo da leitura atenta e incansável dessas fontes de direito, aliada à nossa modesta experiência jurídica, construímos algumas sugestões visando contribuir para amenizar tais dificuldades.
Nesse desiderato, diante do princípio da inércia que caracteriza a jurisdição, concluímos que o pedido de reparação por danos, na espécie, exige, realmente, um autor legitimado e com capacidade técnica-formal para fazê-lo. Logo, inexistindo requerimento expresso por parte do ofendido ou representante legal (pai, mãe, tutor ou curador), ou mesmo de seus herdeiros (art. 31-CPP), ostentando esses requisitos, não caberá ao juiz criminal arbitrar qualquer indenização.
Assim sendo, resta ao ofendido ou representante legal, devidamente identificado nos autos, habilitar-se como assistente de acusação, por intermédio de advogado, para somente assim, formular o pedido indenizatório.
Por outro lado, em se tratando de ofendido pobre na forma da lei, essa iniciativa compete à Defensoria Pública, tendo em vista o disposto no artigo 134 da CF/88¹, que a consagrou comoinstituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.Ao lado disso, a Lei Complementar nº 80/94, alterada pela LC nº 132/2009, que organizou a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados, aliada à Lei Federal nº 8.906/94, faculta esse mesmo entendimento.
De outro modo, nas comarcas onde não existe Defensoria Pública estruturada, o ideal é que o juiz nomeie advogado dativo para tal fim, pois a atribuição delegada ao Ministério Público pelo artigo 68 do CPP, como modalidade de assistência judiciária gratuita, não encontra mais inteiro amparo no atual sistema constitucional brasileiro.
Em verdade,consoante se extrai da melhor doutrina e entendimento do Pretório Excelso, esse órgão ministerial não detém mais, como antes, legitimidade plena para postular indenização civil em favor do ofendido, visto que a sua atuação encontra-se limitada ao campo dos direitos sociais e individuais indisponíveis, ao passo que o interesse do ofendido, no caso, tem natureza nitidamente individual e disponível (vide arts. 127 a 129 da CF/88¹).
Evidentemente, como exceção, e diante da inconstitucionalidade progressiva do artigo 68 do CPP declarada pelo Supremo Tribunal Federal6, pode admitir-se, sendo o ofendido pobre nos termos da lei e não existindo Defensoria Pública na comarca, nem tampouco advogado disponível à assistência judiciária dativa, que o membro do Parquet, havendo prévio requerimento do ofendido, o substitua processualmente no pleito indenizatório. Nos demais casos, respeitando as doutas opiniões doutrinárias e decisões judiciais em sentido contrário, entendemos que tal pretensão exorbitaria o âmbito de sua atribuição.
Verifica-se, portanto, que a única forma viável para se dar cumprimento ao novel dispositivo legal (art. 387, IV, CPP) é haver solicitação expressa feita pela vítima ou representante legal, por meio de assistente de acusação admitido nos autos e com capacidade técnica para peticionar em juízo, cuja legitimidade deriva da nova lei, mesmo que implicitamente4.
A partir daí, com base nos princípios constitucionais da celeridade processual e da razoável duração do processo, previstos no art. 5º, inciso LXXVIII, da CF/88¹, intima-se o réu para tomar ciência do pedido indenizatório e apresentar, querendo, nos próprios autos, a defesa que entender pertinente, devendo-se, contudo, evitar a discussão de questão complexa e de alta indagação nesta esfera criminal, sob pena de obstar a condenação do réu nesse sentido.
Dessa forma, tendo em vista o novo redimensionamento dos bens jurídicos tutelados nos delitos sexuais, protegendo-se essencialmente a dignidade sexual da vítima, a participação do assistente de acusação, por meio de causídico, no deslindamento desses crimes hediondos – estupros -, que causam sequelas físicas e psicológicas, na maioria das vezes, irreversíveis, torna-se imprescindível, na medida em que assiste e auxilia o órgão acusador oficial na busca da correta aplicação da norma penal ao caso concreto.
Ademais, conforme já explicitado, após a reforma implementada pela lei supracitada, que alterou o inciso IV do art. 387 e introduziu o parágrafo único no art. 63, ambos do CPP, mais importância ganhou a figura do assistente de acusação, visto que a intervenção do Ministério Público, na hipótese, se restringe à área de aplicação da lei penal, ao passo que o assistente, além de colaborar com a Justiça, velando pelo bom andamento e desfecho positivo da ação penal, preocupa-se, ainda, em defender seus interesses reflexos, na ânsia de obter uma justa reparação civil, de modo a atenuar as dores e sofrimentos morais experimentados em decorrência da ação delituosa.
Ante o exposto, levando-se em consideração que a prática dessas condutas criminosas, principalmente na modalidade de estupro de vulnerável, cresce assustadoramente em nosso país, motivada, quiçá, pela pedofilia; considerando, ainda, que tais crimes sexuais deixam cicatrizes profundas, sobretudo, em crianças e adolescentes, causando danos irreparáveis à vítima, recomenda-se às pessoas direta ou indiretamente afetadas que intervenham sempre no processo, habilitando-se como assistente de acusação, por advogado legalmente constituído, a fim de melhor assegurar a exata aplicação da lei penal e garantir a devida reparação civil dos danos causados pelo delito.

NOTAS
1.SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 7ª edição, SP: Malheiros, 2010.
2.CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 18ª edição, SP: Saraiva, 2011, p. 209/249.
3.JESUS,Damásio E. de. Direito Penal – volume 3 - Parte Especial, 19ª edição, SP: Saraiva, 2010, p.121/223.
4.NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado, 10ª edição, rev. atual e ampl. SP: RT-2011, p.192/195 e 734//741.
5.TJDFT - APR2009011051935-8, Acórdão nº 529486, Rel. Des. George Lopes Leite, 1ª Turma Criminal, julgado em 29/06/2011, DJ-e: 24/08/2011, pág. 15 8).
6.STF-RE 341.717/SP, Rel. Min. Celso de Melo.

Autor

  • Advogado. Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); Pós-Graduado pela Escola da Magistratura do DF.
    Autor do livro Manual da Legislação Específica do TJDFT e de artigos jurídicos publicados em jornais, revistas e informativos especializados.

Informações sobre o texto

Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT

MARTINS, Joaquim de Campos. A importância do assistente de acusação na apuração dos crimes contra a dignidade sexual. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20845>.

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