Acidentes automobilísticos que envolvem motoristas embriagados e que resultam em morte têm recebido grande atenção da mídia e causado grande comoção na sociedade.
A explosiva mistura de álcool e direção (quase sempre em altíssima velocidade) tem aumentado diuturnamente a quantidade de vítimas fatais e dilacerado sonhos e histórias de vida que são abruptamente interrompidas em violentas colisões e atropelamentos.
Para o operador do direito que labuta na seara criminal, a situação acima retratada traz insistente dúvida: como tipificar o ato praticado por aquele que, embriagado, toma a direção de veículo automotor, excede o limite de velocidade e as leis de trânsito e finda por tirar a vida de outrem? Trata-se de homicídio doloso (com incidência do dolo eventual) ou culposo (figurando a chamada culpa consciente)? No primeiro caso, aplica-se o artigo 121, do Código Penal. Na segunda hipótese, o crime praticado é o do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97).
Em primeiro lugar, urge definir dolo eventual e culpa consciente.
O primeiro é definido pelo Código Penal. A parte final do artigo 18, I, do referido diploma legal diz que o crime é doloso quando o agente assume o risco de produzir o resultado (assim também o é quando o agente quer o resultado – dolo direto, definido na primeira parte do mesmo dispositivo). Em exemplo aligeirado, é quando o agente prevê que com sua ação poderá advir resultado típico (definido como crime), mas continua a agir (dê no que dê, aconteça o que acontecer, vou continuar agindo). É a aceitação do resultado crime (ou pelo menos conformação com sua ocorrência, se vier a acontecer).
A segunda não tem definição legal. Genericamente, diz-se culposo o crime quando o "agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia" (artigo 18, II, do Código Penal). A culpa consciente se dá quando o agente até prevê que sua ação poderá redundar na ocorrência do resultado, mas imagina profanamente que este não ocorrerá (dirige em velocidade bastante superior à permitida, prevê que com isso poderá atropelar e matar alguém, mas imagina que tal resultado não ocorrerá). Não há aqui a aceitação do resultado crime pelo agente.
Observados os dois conceitos (ainda que não estudados em sua completude e de forma profunda), percebe-se que dificilmente se observará na prática a ocorrência da primeira hipótese, partindo da premissa de que em ambos os casos deve-se investigar a fundo o que ia na cabeça do agente quando ele decidiu entrar no seu veículo depois da ingestão exagerada de álcool. Será que ele pensou: estou embriagado, posso vir a atropelar e matar alguém e assumo a ocorrência deste resultado se ele vier a acontecer (aconteça o que acontecer, mate ou não alguém, vou dirigir embriagado - dolo eventual). Ou imaginou: estou bêbado, posso vir a atropelar e ceifar a vida de outrem, mas confio cegamente que com minha perícia automobilística esse resultado não virá a acontecer (previsão e não aceitação do resultado – culpa consciente).
Ao que penso, no mais das vezes, o que acontece na prática é a segunda situação. É difícil imaginar que passe pela cabeça de um indivíduo normal a previsão e aceitação do resultado morte de uma pessoa que ela sequer conheça.
Óbvio que há sim possibilidade de verificar na prática ocorrência do dolo eventual. Quando, por exemplo, o agente embriagado e em alta velocidade cruza sinal vermelho, finda colidindo com outro veículo e confiscando a vida do outro motorista, penso haver elementos para afirmar que houve dolo eventual (é muito difícil, embora possível, acreditar na versão de que o agente acreditava que poderia desviar de veículo que cruzasse o sinal, evitando o choque e suas consequências). Parece evidente que o agente assumiu o risco de produzir o resultado morte (dê no que dê, vou cruzar esse sinal vermelho).
Diferente é a pessoa que, embriagada, finda perdendo o controle do carro e atropelando transeunte. Aqui a culpa se mostra mais evidente (a previsibilidade da ocorrência do sinistro é bastante menor que no caso acima desenhado).
Note-se que há equívoco em analisar a situação de forma matemática ou puramente normativa (descurando do estudo do caso concreto apresentado – todas as circunstâncias que gravitaram ao seu redor). Ao meu ver, não há como criar a equação álcool + direção de veículo automotor + morte = homicídio doloso (dolo eventual). Principalmente porque dizer que o crime foi doloso significa ir à fundo na intenção do agente (dolo é elemento subjetivo do tipo e exige análise profícua da intenção do autor do fato).
Óbvio também que a tese da culpa consciente, por ser a mais favorável ao agente, sempre será levantada pela defesa. Daí porque devem delegados, promotores e juízes estudar o caso com amplitude, esmiuçando todas as provas possíveis (câmeras das ruas em que o carro do autor do fato passou, radares, prova testemunhal, exame de local de crime e outras perícias determinadas, nível de álcool no sangue do agente, participação da vítima no sinistro, prova testemunhal e interrogatório do sujeito ativo do crime apurado).
Os tribunais tupiniquins dificilmente têm retirado da análise do júri popular os fatos definidos pelos juízos inferiores como crimes dolosos contra vida. Assim é que têm sido mantidas decisões de pronúncia calcadas na análise objetiva do fato (considerando concentração alcoólica no sangue do agente, velocidade no momento do impacto e desrespeito às leis de trânsito), mandando a júri motoristas que, embriagados, findam ceifando vidas (não há, no mais das vezes como deixar de ser assim, vez que é difícil imaginar situação em que o agente admita ter assumido o risco de produzir o resultado morte). Vejamos exemplo:
O Superior Tribunal de Justiça, instado a se manifestar acerca do tema pela via estreita do habeas corpus firmou entendimento de que é incabível análise pormenorizada da prova com o fito de determinar se o agente que se embriaga, toma a direção de veículo automotor e finda ceifando vidas agiu com dolo eventual ou culpa consciente nos autos do referido remédio heroico. O Pariato tem optado por deixar a análise do caso para o júri popular. Vejamos decisum:
O fato é que estamos diante de crimes com penas bastante diferentes (o homicídio doloso tem pena de 6 a 20 anos e o culposo na direção de veículo automotor é apenado com reprimenda de 2 a 4 anos) e de grande comoção causada pelos trágicos resultados. Isso gera considerável pressão incidente sobre os atores do processo penal (delegados, promotores e juízes), que finda influenciando a decisão a ser tomada por estes (esta decisão tem diversos reflexos – possibilidade de concessão de fiança pelo delegado de polícia, sujeição do autor do fato ao tribunal do júri, dentre outros).
Penso que há duas formas de enfrentar de forma pragmática a situação minimizando seus funestos resultados (mortes resultantes da embriaguez na direção de veículo automotor): a) intensificar a fiscalização com o fito de impedir que motoristas guiem bêbados; b) aumentar de forma proporcional, estudada e arrazoada a pena descrita no artigo 302, do CTB.
Ademais, cumpre aos delegados, promotores e juízes verificar caso a caso a ocorrência do crime capitulado no artigo 121, do Código Penal ou do artigo 302, do Código de Trânsito Brasileiro, de acordo com as provas apresentadas, evitando enquadramentos matemáticos em colisões e atropelamentos que envolvem motoristas embriagados, alta velocidade e mortes.
Informações sobre o texto
Como citar este texto: NBR 6023:2002 ABNT
SILVA, Márcio Alberto Gomes. Embriaguez + direção de veículo automotor + resultado morte = homícidio doloso ou culposo?. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3117, 13 jan. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/20846>.
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