A discutível constitucionalidade do crime de fuga do local do acidente de trânsito (art. 305, CTB) na visão da doutrina e da jurisprudência
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Publicado em 03/2011
Palavras-chave: Crime – Fuga do local do acidente – Trânsito – Constitucionalidade – Nemo tenetur se detegere
Sumário: Introdução. 1. Considerações sobre o art. 305 da Lei nº 9.503/97. 2. O bem jurídico tutelado e a Constituição. 3. O princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si (nemo tenetur se detegere). 4. Divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Conclusões. Referências bibliográficas.
Introdução
O avanço tecnológico e o desenvolvimento de novas formas de circulação estabeleceram, ao longo do tempo, uma complexa relação entre o homem e o trânsito. Há pouco mais de uma década, preocupados com esse fenômeno, que resultou no aumento gradual no número dos acidentes e das mortes envolvendo veículos automotores, os legisladores elaboraram a Lei nº 9.503, em 23 de setembro de 1997. Denominado Código de Trânsito Brasileiro (CTB), foi contemplado como moralizador, calcado na promessa de efetivamente punir os infratores e reduzir a impunidade e a violência.
Ocorre que, com o passar dos anos, o trânsito deixou de ser tratado apenas como uma questão de engenharia de tráfego, porquanto o atual Código de Trânsito parece ir além dessa concepção clássica. A mão fiscalizadora e punitiva do Estado tende a interferir menos nas condições concernentes ao automóvel (veículo) e mais nos deveres e direitos fundamentais do indivíduo (condutor). Diante disso, constata-se que as questões ligadas ao trânsito se tornaram um problema de enorme complexidade.
Partindo da premissa de que os crimes de trânsito historicamente se apresentam como um problema complexo, verifica-se que a evolução dos tipos penais de trânsito culminou com inovações no atual Código, entre as quais se encontra o delito previsto no art. 305, que cuida do afastamento do condutor de veículo do local do acidente para fugir à responsabilidade civil ou penal que lhe possa ser atribuída, e que ainda tem suscitado divergências doutrinárias e jurisprudenciais relevantes quanto à sua interpretação e constitucionalidade.
1. considerações SOBRE o ART. 305 DA LEI Nº 9.503/97
O referido dispositivo é assim expresso no Código de Trânsito:
Em relação aos sujeitos do delito de fuga do local do acidente de trânsito, tem-se que o sujeito ativo é o motorista do automóvel. Em razão disso, classifica-se como crime próprio, isto é, somente pode ser perpetrado pelo condutor do veículo envolvido no acidente e que empreendeu fuga do local.
Quanto ao sujeito passivo do referido delito, a corrente majoritária, que tem entre seus expoentes Jesus, Silva, Capez, Gonçalves, Nucci, entre outros, entende que é o Estado e, secundariamente, a pessoa prejudicada pela conduta. Pires e Sales asseveram que também é o Estado, a quem incumbe zelar pela administração da justiça, e que eventualmente poderá ser a pessoa física ou jurídica, vítima da lesão patrimonial, devido ao possível ressarcimento do qual será privada em razão da fuga do agente [1].
Capez e Gonçalves afirmam que somente responde pelo delito aquele que se envolve culposamente no acidente, pois apenas este pode ser responsabilizado pela conduta. Assim, não comete crime quem se afasta do local de acidente para o qual não tenha contribuído ao menos culposamente. Em razão disso, a punição do agente pressupõe que se prove, ainda que incidentalmente, que tenha sido ele o responsável pelo ocorrido [2].
No tocante à consumação, Capez e Gonçalves afirmam que "dá-se com a fuga do local, ainda que o agente seja identificado e não atinja a sua finalidade de eximir-se da responsabilidade pelo evento. Trata-se de crime formal" [3]. Por outro lado, Jesus ressalta que a fuga do local deve ser eficaz, no sentido de impedir a descoberta da autoria do fato, eximindo o motorista da responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Se ele foge, mas alguém anota os dados de identificação do veículo, o afastamento é inócuo, não havendo razão para a punição penal [4].
Em relação ao concurso de delitos, Capez e Gonçalves destacam três situações:
O objeto jurídico ou bem jurídico tutelado, para a maioria dos autores, é a administração da justiça, tomada em sentido estrito, como poder ou função soberana do Estado com a finalidade de aplicar o direito para consecução de suas finalidades. Por outro lado, os doutrinadores não são unânimes em relação a essa questão. Entre os que divergem estão Costa Júnior e Queijo, concluindo que o referido tipo penal tutela a vida, a integridade física, a saúde e o patrimônio [06].
E, finalizando a classificação do art. 305 do Código de Trânsito, resta a identificação do seu objeto material, predominando o entendimento de que este é o próprio local do acidente. Em síntese, pode-se depreender que na doutrina prevalece o entendimento de que o crime de fuga do local do acidente classifica-se como um crime próprio (só pode ser praticado por pessoa específica), formal (não exige resultado naturalístico, consistente na existência de lesão efetiva ao Estado), de forma livre (pode ser cometido de qualquer forma), comissivo (demanda-se uma ação), excepcionalmente comissivo por omissão (art. 13, § 2º, CP), instantâneo (o resultado não se prolonga no tempo), unissubjetivo (pode ser cometido por uma só pessoa), plurissubsistente (exige-se vários atos) e admite tentativa.
2. O BEM JURÍDICO TUTELADO E A CONSTITUIÇÃO
Denota-se que a administração da justiça, como tutela jurídica, é o ponto culminante da justificativa pela constitucionalidade. Frise-se, ainda, que entre os seus adeptos há quem diga ser o dispositivo em questão perfeitamente aplicável, mas identificando como outro o bem jurídico protegido, como é o caso de Costa Júnior e Queijo. Estes visualizam a tutela de maneira ainda mais ampla, considerando que a objetividade jurídica "é a tutela da vida, da integridade física e saúde, bem como do patrimônio" [24].
Apesar de o tipo penal que criminaliza o afastamento do local do acidente de trânsito ter suscitado dúvidas quanto ao efetivo bem jurídico tutelado, é comum se constatar que vários autores se utilizam da comparação entre este delito e o de omissão de socorro no trânsito (art. 304, CTB) para justificar ou reforçar suas posições [25]. Como conseqüência, novas confusões.
O referido dispositivo, interpretado paralelamente ao de afastamento do local de acidente, enseja algumas opiniões interessantes no tocante a suas possíveis semelhanças. Para vários autores, o delito de fuga do local de acidente guarda alguma semelhança com o delito de omissão de socorro, pois, naquele, o agente condutor do veículo não se afasta ou se distancia do local para evitar a sua prisão em flagrante ou querer omitir socorro, mas com a finalidade específica de fugir à responsabilidade civil ou criminal que eventualmente lhe acarreta o cometimento do fato. No aspecto penal, o agente procura, com o afastamento do local, eximir-se de responder pelo crime, que passaria a ser de autoria desconhecida. No que concerne ao aspecto civil, o afastamento do condutor se deve à tentativa de responder pelos danos praticados em outro veículo ou mesmo em edificações ou benfeitorias existentes no local do acidente [26].
Porém, existem autores que entendem não haver qualquer semelhança entre os delitos, como é o caso de Monteiro, que afirma que a introdução no direito brasileiro da figura do art. 305, com penas idênticas às previstas para a omissão de socorro, acabou por se tornar com ela inconfundível. Salienta que não há que se atribuir semelhança por se tratar de crime que atinge o interesse da administração da justiça, previsto em todas as leis desse tipo, não se satisfazendo, portanto, a figura típica da fuga com a definição legal da omissão [27].
Rizzardo leciona que não se confunde a referida previsão legal de fuga com a omissão de socorro ou o não atendimento aos feridos. A razão está no fato de que, uma vez provocado o acidente, evade-se o condutor, pouco se importando com a ocorrência de feridos ou lesados [28].
Ocorre que, ao se efetuar uma análise cuidadosa entre ambos os delitos, verifica-se que a distinção não é tão simples assim como pode parecer. Reputa-se fundamental o questionamento desses argumentos, devido à possibilidade da prática de bis in idem, ou seja, a fixação de dupla punição pela mesma conduta. Esse detalhe já foi objeto de análise pela jurisprudência, como se pode perceber do seguinte julgado:
Conforme salientado, a corrente que adota a constitucionalidade afirma que a objetividade jurídica está na perturbação à ação da justiça, dificultando o esclarecimento do fato, e não no interesse da preservação da vida humana ou da incolumidade física da pessoa. Todavia, há quem sustente que a configuração do delito de fuga se perfaz apenas quando ocorre vítima humana, como, por exemplo, Rizzardo [30]. Verifica-se que, por essa concepção, havendo necessidade de vítima humana no acidente para a caracterização do delito de fuga do local, torna-se ainda mais difícil diferenciá-lo do crime de omissão de socorro.
Em que pese as diversas teorias existentes a respeito do tema, tem-se que o conceito de bem jurídico deve ser inferido na Constituição, operando-se uma espécie de normativização de diretivas político-criminais [31]. Diante dos valores fundamentais de referência constitucional, o legislador ordinário está obrigatoriamente vinculado à proteção dos bens jurídicos, cujo conteúdo é determinado por aqueles valores. O legislador deve sempre ter em conta as diretrizes contidas na Constituição e os valores nela consagrados para definir os bens jurídicos, em razão do caráter da tutela penal. Assim, a noção de bem jurídico implica realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento da sociedade.
Conforme Prado, em face da dimensão sociocultural do bem jurídico, a orientação do processo criminalização/descriminalização se subordina às regras axiológicas imperantes em cada momento histórico. A idoneidade do bem jurídico está diretamente relacionada com o seu valor social [32]. Via de conseqüência, evidencia-se a modificação da valoração dos bens jurídicos de acordo com as mudanças sociais constituídas em determinado período histórico.
A Constituição, sobretudo em uma sociedade que vive sob o Estado Democrático de Direito, há de ser o ponto jurídico-político de referência em termos de injusto penal, sendo reduzido às margens da estrita necessidade. Por esse ponto de vista, a intervenção penal deve residir no fato de que a conduta externa praticada (formalmente típica e subjetiva ou normativamente imputável ao agente) não só concretize a descrição legal (típica) como também ofenda concretamente (lesão ou perigo) o bem jurídico protegido [33]. Essa visão consta no princípio da ofensividade, pelo qual o Direito Penal somente poderá atuar diante de lesões ou ameaças de lesões aos bens jurídicos penais. O referido princípio, também conhecido como princípio da intervenção mínima, deve ser entendido como uma limitação ao direito de punir do Estado em favor dos cidadãos. Trata-se de uma garantia da cidadania perante a Administração do Estado.
Colhe-se da doutrina que o delito não é só desvalor da ação, mas também desvalor do resultado, ou seja, produção de um resultado jurídico penalmente relevante para o bem jurídico. Diante disso, constata-se que o crime previsto no art. 305 do Código de Trânsito, prevê punibilidade por infração de simples atividade e mera desobediência, além da mera subsunção formal da conduta à letra da lei, além de se tratar de uma obrigação moral. Pires e Sales ressaltam que em relação aos denominados crimes de perigo abstrato ou presumido são colocadas questões acerca de sua legitimidade constitucional, pois arrisca-se a reprimir a mera desobediência do agente ou a simples inobservância a um preceito penal, sem que a esta acompanhe uma efetiva exposição a perigo do bem protegido [34].
Não explicitando o desvalor da ação e do resultado no art. 305 da Lei 9.503/97, o legislador ignorou os aspectos de política criminal, deixando efetivamente transparecer que a tutela que emerge do dispositivo é moral, vinculada à obrigação de o condutor de veículo permanecer no local para se auto-incriminar. Aliás, trata o dispositivo mais especificamente de um "juízo de dever", o qual não diz respeito ao valor da coisa, mas sobre como deve o condutor agir para que seu comportamento se harmonize com bens que foram objeto de juízos de valor.
Outra questão que merece destaque é a de que os tipos penais estabelecem uma sanção por ter o agente uma determinada conduta contrária ao direito, isto é, cada tipo penaliza uma conduta. Entretanto, é possível se verificar do disposto no art. 305 do Código de Trânsito, que o legislador criou um tipo penal que criminaliza duas condutas, quais sejam, a de se afastar o condutor de veículo do local do acidente para fugir à responsabilidade civil ou penal. Evidentemente, num caso concreto se torna difícil saber qual a razão da fuga do condutor (civil ou penal?), ainda que ambas sugiram uma obrigação moral. Nesse caso, a punibilidade de dupla conduta não demonstra ser tecnicamente aceitável no mundo normativo, vez que cria uma interpretação extensiva do tipo penal. Como é cediço, as normas penais devem ser interpretadas restritivamente.
Com efeito, observa-se, por meio da abordagem do bem jurídico tutelado, que apesar dos diversos bens jurídicos considerados pelos doutrinadores, em que pese a corrente majoritária entender ser a administração da justiça, tem-se que do art. 305 do Código de Trânsito, emerge com mais facilidade a tutela de uma obrigação moral, exigindo que o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente, ferindo o princípio de que ninguém está obrigado a autoincriminar-se, recobrindo-se de inconstitucionalidade.
3. o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si (nemo tenetur se detegere)
O princípio nemo tenetur se detegere assumiu vários significados em inúmeros países, ao longo do tempo, denotando que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo, que ninguém é obrigado a se descobrir, que ninguém é obrigado a se acusar, que ninguém é obrigado a revelar sua própria vergonha, entre outros.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, reconheceu o princípio nemo tenetur se detegere entre as garantias mínimas a serem observadas em relação a toda pessoa acusada de um delito, resguardando-se o"direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada" (art. 8º, nº 2, g). O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 16 de dezembro de 1966, que entrou em vigor em 23 de março de 1976, também se referiu expressamente ao princípio em foco, resguardando-se que toda pessoa acusada de um crime tem direito a "não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada" (art. 14, nº 3, g).
No contexto de garantia, que compõe o devido processo legal, insere-se o nemo tenetur se detegere como um dos princípios que assegura a legitimação da jurisdição. O direito à ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, da Constituição Federal, insere-se na cláusula do devido processo legal. E o direito ao silêncio, considerado como o direito de permanecer calado, é decorrência do princípio nemo tenetur se detegere, colocando-se na esfera da autodefesa. Porém, o referido princípio não se esgota no direito ao silêncio, compreendendo direito mais amplo, que é o de não se autoincriminar.Nesse sentido, não se admite a possibilidade de obrigar o acusado a cooperar na investigação dos fatos, isto é, que o acusado venha a se tornar objeto de prova.
Gomes registra que a garantia da não autoincriminação, consubstanciada no direito de não declarar contra si mesmo e no direito de não confessar, refere-se à manifestação passiva da autodefesa e, conseqüentemente, da ampla defesa. Para o autor, uma relevante conseqüência dessa garantia consiste em que nem o juiz nem qualquer outro agente público, no exercício da persecutio criminis, pode exigir a confissão ou a auto-incriminação do autor do fato [35]. Verifica-se, ainda, a vinculação do princípio nemo tenetur se detegere à preservação da dignidade humana, que é um dos postulados norteadores do Estado brasileiro, como Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, da Constituição Federal). De outra parte, não é demais relembrar de que a regra geral no direito é a de que o ônus da prova cabe ao acusador, e não ao acusado.
Destarte, infere-se que o disposto no art. 305 do Código de Trânsito conflita com o princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere), constitucionalmente assegurado, decorrente das garantias do devido processo legal e da ampla defesa, bem como da presunção de inocência, valores estes agasalhados no art. 5º, incisos LIV, LV e LVII, da Constituição Federal, além de estar também vinculado à preservação da dignidade humana, um dos postulados norteadores do Estado brasileiro, como Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, III, do mesmo diploma legal. Frise-se, também, a ofensa ao referido princípio previsto expressamente no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em seu art. 14, nº 3, g, e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, nº 2, g, ambos ratificados pelo Brasil.
4. DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS E JURISPRUDENCIAIS
Observa-se que, quando o legislador definiu o tipo penal inscrito no art. 305 do Código de Trânsito, talvez não esperasse estabelecer uma enorme confusão quanto à sua interpretação, que vem comportando, desde a sua publicação, basicamente duas posições divergentes na doutrina.
A corrente majoritária entende que o art. 305 da Lei 9.503/97 não comporta discussão acerca de sua constitucionalidade, estando em harmonia com a Constituição Federal e, portanto, perfeitamente aplicável. Destacam-se Capez, Gonçalves, Rizzardo, Carneiro, Costa Júnior, entre outros. De outro lado, há quem sustente a inconstitucionalidade do crime em tela, sob os fundamentos de violação ao texto da Carta Magna, especialmente o disposto no art. 5º, LV e LXVII, por ofender o princípio da ampla defesa, onde ninguém é obrigado a produzir prova contra si, bem como a vedação da prisão civil por dívida, ressalvados os casos de responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e o de depositário infiel. Entre esses, destacam-se Gomes, Pires, Sales, Pimentel, Sampaio Filho, Nucci, entre outros.
Segundo Ninno, o verbo denunciador da conduta típica reside no fato de o condutor do veículo automotor afastar-se de um determinado local, significando sair do lugar do acidente. Nesse passo, o condutor atua de maneira a fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída pela circunstância de estar na direção de veículo automotor. Pouco importa, no caso, que o condutor tenha ou não atuado com culpa ou não provocado vítimas. Exemplifica dizendo que numa simples colisão, sem vítimas, contra o muro de uma casa, desde que o condutor se distancie do local para furtar-se à responsabilidade civil, já será suficiente para preencher o tipo do art. 305 do CTB [07].
Rizzardo afirma que a espécie indica que o condutor, uma vez verificado o acidente, simplesmente abandona o local, não aguardando a realização das providências de identificação dos veículos, dos condutores e demais anotações a cargo da autoridade de trânsito [08]. Observa que a única imposição é a de que não se deve se afastar do local, pois todos devem colaborar com a administração da justiça.
Porém, ressalte-se que mesmo entre aqueles que sustentam a perfeita aplicabilidade do referido dispositivo legal, há divergências quanto à sua consumação. Para alguns autores, a consumação não se dá tão-somente com o afastamento puro e simples do local, ainda necessitando, para a configuração da ação de fuga, o requisito da eficácia. Nessa linha de pensamento, reconhece Jesus que a fuga do local do acidente deve ser eficaz, no sentido de impedir a descoberta da autoria do fato, eximindo o motorista da responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Se esse foge, porém alguém anota os dados de identificação do seu veículo, o afastamento é inócuo, não havendo razão para a punição penal [9].
Discordando desse posicionamento, Capez e Gonçalves reputam que a consumação "dá-se com a fuga do local, ainda que o agente seja identificado e não atinja a sua finalidade de eximir-se da responsabilidade pelo evento. Trata-se de crime formal" [10]. O crime formal se consuma sem exigir produção de resultado, bastando o simples afastamento do local [11]. Nesse caso, ambos os exemplos citados configurariam crime.
No entanto, outra corrente doutrinária possui entendimento diverso, em que pese minoritária. Alega que o tipo penal estampado no art. 305 do Código de Trânsito não se coaduna com alguns princípios constitucionais, encerrando, portanto, uma inconstitucionalidade. Ao comentarem acerca dos crimes de trânsito, pouco tempo depois de publicada a Lei 9.503/97, Pires e Sales já alertavam sobre a problemática interpretação do dispositivo. Com efeito, impõe-se a transcrição da devida crítica:
Na mesma linha de argumentação, apesar de defender a eficácia da fuga (que mais parece uma via alternativa, ante o não pronunciamento judicial de inconstitucionalidade), Jesus afirma que, no campo penal, a lei não pode exigir que o sujeito faça prova contra ele mesmo, permanecendo no local do acidente. Indaga, ainda, que se no homicídio doloso o sujeito não tem a obrigação de permanecer no local, não haveria como exigir essa conduta num crime de trânsito [13]. Ressalta o autor que ninguém tem o dever de se auto-incriminar, com fundamento no art. 8º, nº 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica [14].
Sufragando o mesmo convencimento, Gomes edifica sua concepção na análise do bem jurídico tutelado pelo Estado, que é um dos pilares da criação da norma, servindo de limite ao legislador. O referido autor, desde a publicação do Código de Trânsito, assim sustenta a inconstitucionalidade do crime em questão, ainda que sob premissa diversa:
Ao fazer as primeiras interpretações acerca do Código de Trânsito, Gomes trouxe à tona algumas dificuldades que poderiam advir da leitura e aplicação do art. 305 do aludido código. Salientou e continua a sustentar a obrigação moral, pois o comportamento do condutor, ao se afastar do local do acidente, está relacionado a um juízo de valor. Assim como Jesus, Gomes também ressalta que não se deve olvidar de que no crime de homicídio o autor não é obrigado a permanecer no local do fato.
No mesmo sentido, Lopes, ao afirmar que:
Mais uma entre as diversas evidências de que a discussão sobre a constitucionalidade e a aplicabilidade do art. 305 da Lei 9.503/97 ainda continua latente, encontra-se na obra de Nucci. Acerca da análise do núcleo do tipo, destaca-se a lição do autor:
De outro lado, contestando a argumentação de inconstitucionalidade do dispositivo, Capez e Gonçalves sustentam que não há ofensa a tal princípio, pois este, em verdade, somente tem cabimento após a formalização da acusação, valendo dizer, após a propositura da ação penal [18]. Capez segue, ainda, assinalando que não é plausível considerar que a infração penal em tela ofende o art. 5º, LXVII, da Constituição Federal, que veda prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel. Na verdade, informa que o agente é punido pelo artifício utilizado para burlar a administração da justiça, e não pela dívida decorrente da ação delituosa [19].
Sampaio Filho destaca que o legislador deu ao fato um condão civilista e por demais reparatório, tendo o escopo de evitar que o responsável, de alguma forma, burlasse a responsabilidade de seu ato. Acrescenta dizendo que permanecem indagações sobre o princípio da disponibilidade da ação civil reparatória, pois, se ocorreu um acidente sem vítima, ao prejudicado fica a faculdade em acionar ou não o culpado. E lança uma crítica ao perguntar que, se num caso concreto não desejasse a vítima acionar o culpado judicialmente, ser-lhe-ia justa a sanção penal? [20]
Por seu turno, Carneiro ensina que a sanção aplicada é de natureza penal e não civil. No tocante ao aspecto civil, afirma que não se pune a dívida civil, mas o ardil empregado para ludibriar a administração da justiça. Quanto ao aspecto penal, também alega que não há violação do princípio constitucional da ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, devido ao seu cabimento somente após a propositura da ação. Enfatiza que a objetividade jurídica é a administração da justiça, já que o sujeito passivo é o Estado [21].
A jurisprudência reflete o posicionamento da corrente dominante, favorável à aplicação do dispositivo, em face da culpabilidade ou da reprovabilidade do injusto, caracterizada pelo afastamento do local, deixando o autor desamparada a vítima. É o que se pode perceber dos seguintes arestos:
O Supremo Tribunal Federal, visando dar uma compreensão mais aprofundada do pensamento do Tribunal acerca do instituto ora em comento, divulgou, no Informativo nº 523, trechos de decisões das quais algumas merecem transcrição:
Cumpre destacar que, em 2007, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul se posicionou pela inconstitucionalidade do art. 305, do Código de Trânsito, na Apelação Criminal nº 70019108901.
Comungando do mesmo entendimento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em 2008, julgou inconstitucional o mesmo dispositivo na Apelação Criminal nº 1.0000.07.456021-0/000 (1), nos termos da ementa a seguir:
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, por meio da lavra da relatora Desembargadora Salete Silva Sommariva, nos autos da Apelação Criminal n. 2009.026222-9, também entendeu que o mencionado ilícito penal é incompatível com a Constituição Federal de 1988, razão pela qual arguiu incidente de inconstitucionalidade ao Tribunal Pleno, nos seguintes termos:
Do corpo do acórdão, colhem-se alguns fundamentos de destaque que merecem transcrição:
E do corpo do voto:
O mencionado incidente de inconstitucionalidade atualmente se encontra pendente de julgamento no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina. Contudo, pelo que se observa dos julgados de alguns outros tribunais, a tendência esperada é a de que a Corte Catarinense também julgue inconstitucional, em controle difuso, o art. 305 do Código de Trânsito, com amparo nos mesmos fundamentos elencados no presente estudo.
Diante das divergentes concepções interpretativas até aqui mencionadas, torna-se possível vislumbrar que a corrente partidária da constitucionalidade e aplicabilidade do preceito legal ora estudado parte de uma análise essencialmente dogmática e restrita do referido dispositivo em relação ao contexto da Lei 9.503/97.
Com efeito, é perceptível que o legislador pretendeu efetivamente punir aquele condutor de veículo que abandona o local do acidente para não ser identificado e escapar de suas responsabilidades perante a vítima. Por outro lado, em que pese minoritária, plausíveis são os argumentos da corrente adepta da inconstitucionalidade. Essa corrente parte de uma análise mais ampla, considerando não apenas o efetivo bem jurídico tutelado, o qual deve orientar o legislador ao criar a norma, mas também uma interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico, especialmente à luz dos fundamentos principiológicos da Constituição Federal. Ademais, não se pode olvidar de que o ônus da prova, em regra, cabe ao acusador, e não ao acusado.
Conclusões
O clamor social pela criminalização do condutor de veículo que se afasta ou foge do local do acidente para evitar a responsabilidade civil ou penal que lhe possa ser atribuída, inscrita no art. 305 do Código de Trânsito, desencadeou no legislador uma atuação repressiva, não logrando uma solução jurídica e socialmente adequada.
Na doutrina e na jurisprudência, verificou-se que o entendimento majoritário é no sentido da perfeita adequação do dispositivo legal aos preceitos constitucionais. Tal posicionamento sustenta-se na suposta preocupação do legislador em tipificar o crime em questão revelando o objetivo de punir aqueles que tentam obstar ou dificultar o trabalho da Justiça no esclarecimento dos fatos ou, ainda, impedir sua identificação para fins de responsabilização ulterior abandonando o local do acidente.
A concepção apresentada por essa corrente é interessante, mas não está imune a críticas. Não obstante minoritária, a corrente que entende o referido tipo penal como violador de alguns princípios constitucionais, especialmente o da não autoincriminação, inserido no da ampla defesa, também apresenta coerência em suas argumentações. A razão está no fato de suas concepções sobre o crime de fuga do local do acidente partirem de uma análise sistemática do ordenamento jurídico, fundado no bem jurídico tutelado pelo Estado, nos preceitos fundamentais contidos no Pacto de São José da Costa Rica e na Constituição Federal.
Tendo em vista que alguns tribunais começam a despertar para a inconstitucionalidade do referido ilícito penal, ainda que em controle difuso, talvez seja este um caminho sem volta.
Portanto, conclui-se que o disposto no art. 305 do Código de Trânsito conflita com o princípio da não autoincriminação (nemo tenetur se detegere), constitucionalmente assegurado, decorrente das garantias do devido processo legal e da ampla defesa, bem como da presunção de inocência, valores estes agasalhados no art. 5º, incisos LIV, LV e LVII, da Constituição Federal. Não é demais lembrar que está também vinculado à preservação da dignidade humana, um dos postulados norteadores do Estado brasileiro, como Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1º, III, do mesmo diploma legal. E, ainda, saliente-se que o referido princípio está previsto expressamente no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em seu art. 14, nº 3, g, e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, nº 2, g, ambos ratificados pelo Brasil.
Referências bibliográficas
[1] PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito na Lei nº 9.503/97. p. 210.
[2] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 40.
[3] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 40.
[4] JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503/97). p. 143-144.
[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial. p. 298-299.
[6] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do Código de Trânsito. p. 67.
[7] NINNO, Jefferson. Crimes de trânsito (Lei 9.503/97). In: FRANCO, Alberto Silva (Org.). Leis penais especiais e sua interpretação jurisprudencial. p. 1084-1085.
[8] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito brasileiro. p. 788-789.
[9] JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503/97). p. 143.
[10] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 40.
[11] CARNEIRO, Joseval. Comentários aos crimes de trânsito. p. 34.
[12] PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito na Lei nº 9.503/97. p. 210.
[13] JESUS, Damásio E. de. Crimes de trânsito: anotações à parte criminal do Código de Trânsito (Lei 9.503/97). p. 142.
[14] Convenção Americana Sobre Direitos Humanos – Pacto de San José de Costa Rica [...] Parte I – Deveres dos Estados e Direitos Protegidos [...] Capítulo II – Direitos Civis e Políticos [...] Art. 8º. Garantias judiciais [...] 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: [...] g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.
[15] GOMES, Luiz Flávio. CTB: primeiras notas interpretativas. Boletim IBCCrim. [s.1.], nº 61, p. 4-5, dez. 1997.
[16] LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Crimes de trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998., p. 219.
[17] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. p. 848.
[18] CAPEZ, Fernando; GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Aspectos criminais do Código de Trânsito brasileiro. p. 39.
[19] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: legislação penal especial. p. 297.
[20] PIMENTEL; Jaime; SAMPAIO FILHO, Walter Francisco. Crimes de trânsito comentados: analisados à luz da Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997. São Paulo: Iglu, 1998, p. 49-50.
[21] CARNEIRO, Joseval. Comentários aos crimes de trânsito. p. 34.
[22] RT 316/338.
[23] BRASIL. Apelação criminal nº 1.275.003/7. 8ª Câmara. Julgado em 18 de outubro de 2001. TACrim-SP. Relator: René Nunes.
[24] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do Código de Trânsito. p. 67. Os autores, nessa obra, limitam-se a descrever a classificação do delito em exame sem adentrar na discussão da sua possível inconstitucionalidade.
[25] Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa, se o fato não constituir elemento de crime mais grave. Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.
[26] COSTA JÚNIOR, Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth. Comentários aos crimes do Código de Trânsito. p. 67.
[27] MONTEIRO, Ruy Carlos de Barros. Crimes de trânsito (e a aplicação da Lei nº 9.099, de 26.9.1995, e a responsabilidade civil). p. 199.
[28] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito brasileiro. p. 789.
[29] BRASIL. Apelação criminal nº 1.215.177/4 . TACrim-SP. Relator: Mesquita de Paula.
[30] RIZZARDO, Arnaldo. Comentários ao Código de Trânsito brasileiro. p. 789.
[31] PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Palo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 62.
[33] PRADO, Luiz Régis. Bem jurídico-penal e Constituição. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 96.
[34] GOMES, Luiz Flávio. Norma e bem jurídico no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 24 (Série As ciências criminais no século XXI: V.5).
[35] PIRES, Ariosvaldo de Campos; SALES, Sheila Jorge Selim de. Crimes de trânsito na Lei nº 9.503/97. p. 54.
[36] GOMES, Luiz Flávio. As garantias mínimas do devido processo criminal nos sistemas jurídicos brasileiro e interamericano: estudo introdutório. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coord.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 222.
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